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Aimée Pedezert

(Francesa - 1988 )

FRUTARIA

Desenhos recentes

Uma frutaria, em tempos de pandemia, não é só uma frutaria. É um dos únicos estabelecimentos de comércio a retalho que se mantém aberto, para lá dos horários mais estritos do Estado de Emergência decretado. Permite aos confinados esticarem as pernas nas voltas do bairro; o encontro, mesmo que a dois metros de distância, com os vizinhos; o sorriso semiescondido na máscara pela antevisão de manjar, em segurança, o que se adquiriu no pequeno mercado. A frutaria é um farol aceso no silêncio das ruas. O local onde se podem encontrar bens de primeira necessidade ou outros considerados essenciais no actual contexto.

Na Frutaria criada especialmente para a Tinta nos Nervos por Aimée Pedezert (Bordéus, 1988), artista francesa que vive e trabalha em Lisboa desde 2015, os bens essenciais são os artísticos, fruto do impulso criativo que torneia uma ideia de imobilidade e suspensão das actividades. Esta Frutaria está sempre aberta. Porque de portas fechadas, se pode espreitar pelas montras a ver o que existe, porque online, no site, se montou uma banca virtual onde é possível encontrar dióspiros, alfaces, beterrabas, cerejas, pêssegos ou bananas. Com um conjunto de 18 desenhos a acrílico sobre papel, realizados em pinceladas amplas e gestos rápidos, Aimée ocupa as paredes da galeria apropriando-se esteticamente da (in)disciplina com que o comércio normalmente disponibiliza a mercadoria ao olhar e desejo dos clientes voyeurs.

O que se pretende aqui é inundar de cor todo o espaço. Fazer com que, um dia de portas abertas novamente, o visitante mergulhe na intensidade luminosa e retire o peso de dias cinzentos, pautados pelo medo e pela doença. O que se quer é o oposto.  “Só me apetece desenhar com cor”, referiu a artista em conversa quando confrontada com a diferença em relação a trabalhos anteriores, quase sempre executados a preto, com tinta da China, sobre fundo branco.  A cada imagem, mais ou menos fiel ao referente real, os frutos e legumes são sobretudo forma e cor, fundo e figura. Os 12 desenhos mais pequenos, onde se podem descobrir sementes e grãos, são jogos visuais de paciência, a contabilizar um tempo que parece estender-se, ponto por ponto, pincelada a pincelada.

Há um sentido de urgência e execução pouco aprimorada que rasga a brancura da folha papel na súbita vontade cromática. Faz-se nascer a cor com a mesma energia desregulada com que as crianças descobrem o poder dos riscadores. Não há peso ou desejo de filiações artísticas apesar de algumas referências serem evidentes. Não há pudor na expressão pueril do vocabulário encontrado, porque tudo o que aglutina as imagens criadas é o puro divertimento de as fazer. Aqui numa galeria. Mas podia ser na rua, onde Aimée primeiramente deu a conhecer o seu trabalho.

Numa das primeiras intervenções em Lisboa, a artista assinalou alguns equipamentos com frases escritas a branco em pedaços de cartão. Reconheciam-se nelas letras de música que pontuavam, com poesia, locais insólitos e mundanos.

Mas foi quando envolveu os transeuntes num enigmático jogo de procura e reconhecimento dos rostos que tinha desenhado, a grosso traço preto sobre folhas de papel brancas, coladas depois sobre as paredes e o mobiliário da cidade, que cativou atenções. "Have you seen this woman / this man?", foi o nome que atribuiu a esse projecto de representação de rostos eventualmente identificáveis, um mote agregador das caras dispersas o que desencadeava o instinto detectivesco da procura de sentido por parte de quem as encontrava. Seriam registos feitos do real ou figuras ficcionadas? Estas pessoas poderiam de facto ser encontradas ou cada desenho era conducente apenas a um renovado encontro com outro desenho?

Esta acção revelou um aspecto constante na pesquisa artística de Aimée Pedezert: a profunda imersão na vivência humana e urbana fazendo do desenho uma forma de relação e descoberta de pessoas e espaços. Daí que a artista refira desenhar "de maneira compulsiva, precipitada e desajeitada" na rua ou "no fundo dos cafés", sobre os temas do "teatro humano", os rostos, os gestos, os hábitos das pessoas, as contradições sociais, mas também os objectos, os livros, os animais, as flores, o mar e as "coisas que trazem felicidade". E nestas, tantas vezes a música, encontrada em instrumentos musicais ou através dos seus intérpretes. A série de músicos e cantores de jazz têm-se constituído como imagens reveladoras dessa sedução pela música que fez a artista criar na plataforma Spotify o canal de radio twotma onde partilha, como dj informal, uma quase banda sonora do seu trabalho.

Existe uma dimensão multiforme, muitas vezes colaborativa nas imagens que produz. Os desenhos espalham-se pelas casas ou por livros ilustrando escritas alheias, nas ruas, multiplicados pela acção de amigos que ajudam a colá-los nas paredes, em t-shirts ou tote bags originais onde o tecido funciona como tela despretensiosa e móvel, em tatuagens. Sempre promovendo encontros e a relação com o outro. O desenho nasce, ganha sentido e promove encontros. E através dele, Aimée celebra a arte e a vida.

São muito evidentes duas linguagens gráficas que correspondem, de certo modo, a dois campos de trabalho. Por um lado, o aspecto irrequieto do desenho rápido e a procura de soluções imediatas da sua exposição que dá expressão à vertente engajada e socialmente activa de Aimée. São diversas as suas participações em movimentos de luta contra o racismo (com imagens como Black Lives Matter e We Are One), de questionamento da gentrificação e de combate pelo direito à habitação em Lisboa, com desenhos de street art e cartazes efémeros que revelam situações de crise e as necessidades das pessoas.
 
Por outro, o distanciamento do real com a construção de um vocabulário depurado, poético, desvinculado do registo imediato e assente na construção lírica do traço contínuo, dando corpo a uma imagética evocativa de movimentos e nomes maiores da contemporaneidade, como Henri Matisse, Fernand Léger, Eduardo Chillida ou Ellsworth Kelly.

Na Frutaria poder-se-ia dizer que se reúnem, num projecto, as duas vertentes: por um lado, o carácter conceptual do que representa e como se representa, e por outro, a similitude com a ideia de improviso, imperfeição e desapego, características da forma com que Aimée Pedezert se inscreve na comunidade, erguendo o pincel pelo direito à habitação ou contra o racismo e agora, na Frutaria, pelo direito à saúde, à alegria, à liberdade, à partilha, à cultura que, sem serem chavões nomeados, são ideias que inevitavelmente atravessam o projecto expositivo.


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