Henrique Ruivo
(Português - Borba, (1935-2020)Boato
Obra gráfica e pintura
20 de Abril – 18 Maio de 2024
Este ano celebramos o 25 de Abril e os 50 anos do começo da vida democrática no nosso pais. A exposição Boato, de Henrique Ruivo, integra as comemorações desse momento fundador, na Tinta nos Nervos.
Nascido em plena ditadura, no Alentejo, Henrique Ruivo (1935-2020) deu voz no seu trabalho gráfico e plástico ao combate pela liberdade, à resistência e à aspiração por dias melhores.
Os trabalhos aqui reunidos datam sobretudo da década de 1970, com particular incidência nos anos posteriores à revolução, quando pintura e obra gráfica se contaminaram, influenciaram e criaram territórios de leitura e pesquisa comuns, para lá de especificidades disciplinares e dos contextos para que foram produzidas.
Mostram-se projectos gráficos realizados em diferentes contextos (da pesquisa artística à intervenção, à contestação) e em diversos suportes - Ilustração, Cartoon político, Caricatura, Propostas gráficas para Jornais, Revistas, Livros (capas para múltiplas editoras), Autocolantes, Capas de discos, Cartazes, Serigrafias, Pintura. A maior parte dos originais de desenho são inéditos, muitos produzidos no âmbito da sua participação activa na redação e composição da revista Seara Nova, e as pinturas e esculturas raramente vistas após o contexto expositivo original.
Num discurso autoral em que o humor é quase sempre pedra de toque, sátira e critica mais aguerrida caminham sempre de mãos dadas com uma transbordante alegria de poder participar nos dias da revolução.
O percurso inicia-se com a publicação autoeditada O Cacete, de 1969, de que se mostram desenhos e matrizes originais. Impresso em Roma, onde o artista vive exilado de 1962 a 1974, o 1º numero do jornal teve uma tiragem de centenas de exemplares, distribuídos clandestinamente por vários núcleos de resistentes antifascistas em Itália, França, Inglaterra, Argélia e Portugal.
Cívica e politicamente empenhado, Henrique Ruivo é um artista comprometido com a causa da liberdade (contra a censura, contra a repressão), em acções clandestinas, primeiro, em iniciativas diversas, nos anos posteriores a Abril de 1974, integrando com entusiasmo muitas acções culturais do M.F.A. (Movimento das Forças Armadas). Dirá numa entrevista, em 1968 que “A elaboração artística deve realizar-se em completa liberdade. A possibilidade de experiência e de linguagem deve ser total. Só assim a arte se enriquecerá de descobertas e fugirá aos academismos estéreis. E é também assim que ela cumprirá toda a sua função revolucionária. O facto de a criação artística dever ser livre e autónoma não exime o artista da sua luta, como homem politico, na sociedade em que está enquadrado.”
Um cartão de boas festas com a caricatura de Oliveira Salazar (enviado para Portugal dentro de um bolo para ser distribuído em segredo), os grafismos para a Frente Patriótica de Libertação Nacional ou para a Comissão de Socorro aos Presos Políticos; o calendário de 1975, os cartazes e as pinturas murais colectivas realizadas pelo país, são alguns exemplos destes momentos fervilhantes de resistência, combate e utopia.
Para além da atenção constante à realidade portuguesa, Henrique Ruivo responde assiduamente a colaborações pedidas de Portugal, para a concepção de materiais gráficos diversos sobretudo para editoras para as quais fez capas de livros, ilustrações ou composições gráficas. Primeiro em Roma, depois já em Portugal, após o regresso em 1974. Bertrand, Iniciativas Editoriais, Prelo ou Seara Nova são algumas das editoras com que trabalhou.
Para a exposição foram seleccionados livros com capas da sua autoria, muitos em sintonia visual com o que vinha a desenvolver na pintura desde inícios de 70; um disco, entre vários, para o qual elaborou a cobertura; livros infantis para os quais fez capas e ilustrações e duas peças serigráficas que se incluíam em projectos colectivos:
Mãos, de 1971-72 , uma imagem de resistência que parece emergir de um excerto de um poema de Manuel Alegre, foi editada pela Seara Nova como parte de uma série de 16 cartazes serigráficos realizados por artistas como António Charrua, Rogério Ribeiro, Jorge Vieira ou Espiga Pinto, entre outros.
Catarina Eufémia, de 1974, integrava o álbum de gravuras Portogallo 1973, concebido a partir de Roma, com a colaboração de artistas antifascistas italianos e da américa latina em apoio à recém formada Intersindical e à luta e protecção dos trabalhadores portugueses.
OBoato, de 1975, dá nome à exposição. Peça de resistência revolucionaria aludia à figura criada por Quito a apelar à manifestação da maioria silenciosa para corporizar a necessidade de manutenção de um estado de alerta constante em relação ao que pudesse ameaçar ou comprometer a liberdade conquistada. Com um design poderoso, prendia a atenção pela figuração reconhecível, o uso de elementos arquétipos (o capitalista, o lacrau, a serpente ), a mensagem clara (o combate à falsa notícia potencialmente corrosiva) e uma solução cromática eficaz de cores complementares. A par do poster Boato - que foi editado em vários formatos e par de cartazes de outros artistas nas campanhas de dinamização cultural e acção cívica do MFA-, mostram-se, pela primeira vez, esboços originais onde o artista ensaiou cores e soluções de composição e enquadramento gráficos.
Praticamente contemporâneas desta peça são as pinturas expostas. Se nos anos 60 as obras de Henrique Ruivo se situam no cruzamento entre pintura e escultura, com o agenciamento, na superfície bidimensional do suporte, de matérias e materiais que provocam a estabilidade do plano e introduzem uma leitura em relevo, nos anos 70 essa intensão passa a ser assumida de forma gráfica, através da impressão sobre tela ou papel e da utilização de máscaras e recortes. Depois de uma série profundamente onírica e poética (a Série Negra), em que a memória dos dispositivos surrealistas se cruza com o encanto das narrativas misteriosas e fantásticas da literatura, evocativas, por exemplo, das escritas de autores como Júlio Verne, ou com o desassossego que ecoava de ambientes opressivos e angustiantes oriundos de outras narrativas, Henrique Ruivo recupera, a partir de 1974, a figuração tosca e expressiva da década anterior mas agora tornada garatuja, muito elástica e linear, inscrita em paisagens de intenso cromatismo. As construções narrativas assentam de forma evidente na colagem, seja de imagens de sua autoria, seja de outras pré-existentes, estampadas e editadas para crianças, que aqui surgem planificadas em baixo relevo.
Assinale-se a importância do fascínio que Henrique Ruivo sempre teve pelas culturas "não eruditas" (uma aproximação a uma arte diferente, pré-histórica, primitiva, infantil ou popular, que revela interesses próximos da arte bruta de Dubuffet), notará o historiador de arte Fernando Rosa Dias. Mas agora reforçado pelo contexto festivo da revolução e a redescoberta de um país, suas raízes e expressões identitárias mais genuínas, após anos de ausência e exílio. Um aspecto que se estende igualmente aos poucos objectos cenográficos escultóricos realizados na década, com integração de brinquedos populares nas construções pictóricas e escultóricas.
Do comentário atento e arguto dos anos em que foi colaborador regular da Seara Nova em meados da década de setenta, nasceram desenhos e composições reproduzidos na revista de que agora se mostram também alguns originais. Alguns atravessados por algum desalento por causas que considerava fundamentais se terem desvanecido em novos contextos (como a Reforma Agrária), outros pela sátira e caricatura a novos protagonistas e enquadramentos políticos.
O final da década de setenta será marcado, na pintura, pela progressiva planificação das imagens, lineares, depuradas, mantendo um pendor figurativo muito livre e o apelo narrativo, expressões constantes do amante de histórias que sempre foi.
Consulte o CV curto de Henrique Ruivo aqui.
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Henrique Ruivo
(Portuguese– Borba, (1935-2020)Boato (Rumor)
Graphic work and paintings
April 20th – May 18th 2024
This year we celebrate April 25th and 50 years since the beginning of democratic life in our country. The exhibition Boato (Rumor), by Henrique Ruivo, is part of the celebrations of this founding moment, at Tinta nos Nervos.
Born during the dictatorship, in Alentejo, Henrique Ruivo (1935-2020) gave voice in his graphic and visual work to the fight for freedom, resistance and the aspiration for better days.
The works gathered here date mainly from the 1970s, with a particular focus on the years after the revolution, when painting and graphic work became contaminated, influenced and created territories of common reading and research, beyond disciplinary specificities and the contexts for which they were produced.
Graphic projects carried out in different contexts are shown (from artistic research to intervention, to protest) and in different media - Illustration, Political Cartoon, Caricature, Graphic proposals for Newspapers, Magazines, Books (covers for multiple publishers), Stickers, Covers of records, posters, screen prints, painting. Most of the original drawings are unpublished, many produced as part of his active participation in the writing and composition of the Seara Nova magazine, and the paintings and sculptures were rarely seen after their original exhibition.
In an authorial speech in which humor is almost always a touchstone, satire and fiercer criticism always go hand in hand with an overflowing joy of being able to participate in the days of the revolution.
The earliest work is the self-published publication O Cacete, from 1969, which shows original drawings and zin engraving matrices. Printed in Rome, where the artist lived in exile from 1962 to 1974, the first issue of the newspaper had a circulation of hundreds of copies, distributed clandestinely by various groups of anti-fascist resistance in Italy, France, England, Algeria and Portugal.
Civically and politically committed, Henrique Ruivo is an artist committed to the cause of freedom (against censorship, against repression), first in clandestine actions and in various initiatives, in the years after April 1974, enthusiastically integrating many cultural actions from the M.F.A. (Armed Forces Movement). He said in an interview in 1968 that “Artistic elaboration must be carried out in complete freedom. The possibility of experience and language must be total. Only in this way will art be enriched with discoveries and escape sterile academicism. And this is also how it will fulfill its revolutionary function. The fact that artistic creation must be free and autonomous does not exempt the artist from his struggle, as a politician, in the society in which he lives.”
A happy holidays card with a caricature of Oliveira Salazar (sent to Portugal inside a cake to be distributed in secret), graphics for the Patriotic Front for National Liberation or for the Relief Commission for Political Prisoners; The 1975 calendar, posters and collective mural paintings created across the country are some examples of these simmering moments of resistance, combat and utopia.
In addition to constant attention to the Portuguese reality, Henrique Ruivo assiduously responds to collaborations requested from Portugal, for the design of various graphic materials, especially for publishers for which he created book covers, illustrations or graphic compositions. First in Rome, then in Portugal, after returning in 1974. Bertrand, Iniciativas Editoriais, Prelo or Seara Nova are some of the publishers with which he worked.
For the exhibition, books with covers by him were selected, many in visual harmony with what he had been developing in painting since the early 70s; one album, among several, for which he prepared the cover; children's books for which he created covers and illustrations and two screen-printed pieces that were included in collective projects:
Mãos (Hands), from 1971-72, an image of resistance that seems to emerge from an excerpt from a poem by Manuel Alegre, was published by Seara Nova as part of a series of 16 serigraphic posters created by artists such as António Charrua, Rogério Ribeiro, Jorge Vieira or Espiga Pinto, among others.
Catarina Eufémia, from 1974, was part of the engraving albumPortogallo 1973, done in Rome, with the collaboration of Italian and Latin American anti-fascist artists in support of the recently formed Portuguese union Intersindical and the struggle and protection of Portuguese workers.
O Boato (Rumor), from 1975, gives the exhibition its name. A work of revolutionary resistance alluded to the figure created by Quito that appeals to the silent majority to speakout and embody the need to maintain a constant state of alert in relation to what could threaten or compromise the freedom achieved. With a powerful design, it captured the attention through its recognizable figuration, the use of archetypal elements (the capitalist, the earwig, the snake), the clear message (the fight against potentially corrosive fake news) and an effective chromatic solution of complementary colors. Alongside the poster Boato - which was published in various formats and a pair of posters by other artists in the MFA's cultural promotion and civic action campaigns -, the original sketches are shown for the first time where the artist tested colors and compositional solutions and graphic framing.
Practically contemporary with this piece are the paintings on display. If in the 1960s Henrique Ruivo's works were located at the crossroads between painting and sculpture, with the integration, on the two-dimensional surface of the support, of materials that provoke the stability of the surface and introduce a reading in relief, in the 1970s this intention now takes on a graphic form, through printing on canvas or paper and the use of masks and cutouts. After a deeply dreamlike and poetic series (the Black Series), in which the memory of surrealist devices intersects with the charm of mysterious and fantastic narratives in literature, evocative, for example, of the writings of authors such as Jules Verne, or the restlessness that echoed from oppressive and distressing environments originating from other narratives, Henrique Ruivo recovers, from 1974 onwards, the rough and expressive figuration of the previous decade but now turned into scribbles, very elastic and linear, inscribed in landscapes of intense chromaticism. The narrative constructions are evidently based on collage, whether of images of his authorship or of pre-existing ones, printed and edited for children, which appear here planned in low relief.
Notice the importance of the fascination that Henrique Ruivo always had with "non-erudite" cultures (an approach to a different art, prehistoric, primitive, childish or popular, which reveals interests close to Dubuffet's brute art), will be noted of art historian Fernando Rosa Dias, but now, reinforced by the festive context of the revolution and the rediscovery of a country, its roots and more genuine expressions of identity, after years of absence and exile. An aspect that also extends to the few sculptural scenographic objects created in the decade, with the integration of popular toys into pictorial and sculptural constructions.
From the attentive and astute commentary of the years in which he was a regular contributor to Seara Nova in the mid-seventies, drawings and compositions were born, reproduced in the magazine, of which some originals are now also shown. Some were crossed by some dismay because causes they considered fundamental had disappeared in new contexts (such as Agrarian Reform), others by satire and caricature of new protagonists and political frameworks.
The end of the seventies will be marked, in painting, by the progressive flattening of images, linear, refined, maintaining a very free figurative tendency and narrative appeal, constant expressions of the lover of stories that he has always been.
See Henrique Ruivo’s short bio here.
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