Inês Viegas Oliveira
(Portuguesa- Tavira, 1803)“Este abandono acontece no ecrã com o seu folclore de frases feitas. Como uma anedota que alguém conta ao fundo da sala, gente morre no Mediterrâneo, cabeças são criadas como gado, um continente arde. E cada um de nós é o monstro do seu tempo, o monstro que este tempo arregimenta, ombros sobre os quais carregar a ilusão de nada haver além de um tempo a que se chama humano. Deixamos de ver rostos, de reconhecer a voz, a língua, o que em nós está vivo. Os olhos deixam de trazer-nos um olhar. As mãos de outros homens e mulheres assemelham-se terrivelmente às nossas próprias mãos, absurdas e minuciosas. O coração retira-se de todas as coisas.”
Andreia C. Faria. , Clavicórdio (Língua Morta, 2020).
Depois de observar, mesmo que rapidamente, este conjunto de imagens de Inês Oliveira, surgirá a impressão de que haveria uma forma de reunificar estas imagens através do mel da narração, mas os elementos dispersam-se, os elos apenas se adivinham e logo se dissipam, ou pelo contrário não se formam mas teimam em fantasmar.
Sendo criados pela mesma mão, e convivendo num mesmo espaço e circunstância, há um sublinhado que as une, mas pressente-se algo mais, difícil de expressar em conceitos decididos. Comecemos pela sua origem factual. Este ciclo de desenhos foi criado para as sessões das “Quintas de Leitura”, no Teatro Municipal do Porto, a partir de poemas e textos de Andreia C. Faria, de cujas palavras se toma o título da exposição. Diz Inês Oliveira, ponderando a escolha desse verso, atentar a um sentimento traduzindo a ideia de que “a única solução para um ir vivendo é retirando o coração das coisas, porque a intensidade do mundo, a pobreza, a guerra, as discórdias, o aquecimento global… são demasiado”. Mas ao mesmo tempo a autora confessa haver “uma tentativa de recuperar a inocência da infância e na impossibilidade de o fazer”.
Por um lado uma fuga, por outro um regresso, sem qualquer paradoxo no dinamismo desse mesmo movimento. Compreender-se-á, então, a manutenção nos desenhos finais de traços e sinais dos primeiros gestos, como se o esboço fosse o desenho final, ou a versão final não abdicasse de revelar os acidentes de percurso. Um grau de sujidade, de ruído gráfico, de uma neblina quase sempre presente nas imagens que aqui vemos, menos como ecrãs de distanciamento do que confirmações das tentativas de regresso que convidam a uma empatia, senão mesmo compreensão.
Para além da epígrafe acima, Oliveira ainda bebeu dos seguintes versos, ainda de Andreia C. Faria, na feitoria destes desenhos:
“Chega-se muito resumidamente a velho.
A criança espera ao domingo o infalível
osso fluorescente, oferecido com o jornal,
o estupendo osso da mandíbula de um dinossauro
de quem virá a ser, desfeita
a impura impressão de beleza,
um digno contemporâneo.”
In Tão bela como qualquer rapaz (Língua Morta, 2017)
Os desenhos são então não apenas uma resposta afecta às palavras da poeta mas também aos sentimentos desdobrados nessa relação com o mundo. Um fascínio pelas ruínas instantâneas oferecidas pelo mundo contemporâneo – seja um barato osso de plástico fluorescente seja uma instituição que mal fundada já se encontra obsoleta e marcada, como quereria Walter Benjamin, pelos actos de barbárie que a tornaram possível.
Daí que a curiosidade desse olhar, de correcção, poder-se-ia dizer, dos tumultos do mundo, tanto vogam por entre multidões apressadas como por aparentes gabinetes de curiosidade tranquilos, num momento de vagar. Os tais fantasmas da narrativa possível faz com que se criem pequenos trânsitos de encaixe e relação individuais entre imagens, como se vogássemos de trás para diante, mais próximos e mais afastados, de uma cena qualquer contínua… Nesta dúzia de imagens há uma sensação de parecer nascer um gesto coeso por detrás da variedade objectual e temática. As imagens em si não se procuram apresentar com linhas de força comuns, homogéneas ou fechadas – daí o emprego, acima, de “ciclo”, não de “série” - e bem pelo contrário voguem com atenções bem distintas. Ainda que possamos ver como a figuração preside à sua feitoria, os ângulos e proximidade dos objetos de atenção variam, assim como o factor da iluminação, das escolhas cromáticas e dos objectos em si.
Dito isto, a figura humana está sempre presente. Se não enquanto presença directa – afastada, parcelada, apressada – pelo menos enquanto reflexo, sombra, imagem capturada, ou traço de passagem apartada da cena por segundos: a luz deixada ligada, o braço do gira-discos que ainda não terminou a faixa, a pétala tombada. A potencialidade, inclusive no sentido aristotélico, (da) narrativa das imagens de Oliveira é reforçada pela insistência dos títulos, que se arranca a uma prática de desarticulação de significados associada a alguma da arte contemporânea, e revela pistas de interpretação novelescas. Se se ponderar sobre as relações postuladas por Barthes dos textos para com as imagens, poderemos descobrir aqui as tais correcções permitidas pelo regresso à abertura da infância, e especificações, encaminhamento de focos, organizações temporais, despertares poéticos, mas igualmente aumentos do enigma ou surpreendentes absurdos. Que obrigam sempre o coração a bater de outro modo.
Veja o CV da artista aqui.
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