Edmond Baudoin
(Francês- Nice, 1942)Apresentação:
A obra do artista e autor francês Edmond Baudoin (Nice, 1942) é fluida e mesclada, e ainda está numa fase de aprendizagem. A sua obra consolida-se nocampo da banda desenhada, mas a prática é uma convergência multiplicadora do caderno de desenho, do diário de viagem, do diário íntimo, da pintura caligráfica, do retrato. Existindo regras internas a essa linguagem, Baudoin não as conhecerá. Sendo o acto criativo algo de singular e pessoal, há espaço, sempre, neste artista, para a presença do outro nas suas páginas. Há lugar para o diálogo, a correspondência, a colaboração, a presença dos outros, sejam artistas ou não, amigos de longa data ou pessoas conhecidas apenas durante os minutos de fazer um desenho do seu rosto, olhos nos olhos. A presente exposição é um encontro de três livros, três gestos, eles mesmos encontros consequentes.
La ligne, un horizon; le corps, une rivière(“Uma linha, um horizonte; o corpo, um rio”) centra-se na arte original de três livros recentes do autor, ambos bem distintos entre si, ainda que marquem algumas das contínuas investigações e diálogos de Baudoin.
Le Corps Collectif(Gallimard: 2019) é um longo ensaio-caderno de observação. O autor dedicou alguns meses em que visitava o estúdio da companhia de dança contemporânea Le Corps Collectif, fundada em 2009 pela coreógrafa Nadia Vadori-Gauthier, partilhando momentos de exercícios de aquecimento, ensaios, discussões, processos de criação, assim como alguns dos espectáculos e acções exteriores. Tal como emQuestions de Dessin (2002) ou La Musique du Dessin (2005), este livro entrega-se a vários modos de tentar compreender a razão de um desenho, auscultando os seus automatismos e aprendizagens, domínios e encontros fortuitos. Tal como em tantos outros projectos, o diálogo que o autor estabelece com os seus interlocutores abre-lhes espaço no livro para que se expressem directamente, pelas suas próprias palavras, em conjunto com um retrato. E, acima de tudo, os desenhos formam-se na perseguição passional dos materiais em constante busca e perda do objecto traçado.
A obra e Baudoin sempre teve várias inflexões. A criação de bandas desenhadas de viagem sempre estiveram presentes, de certa forma, participando em vários volumes colectivos. A partir de 1991, com Couma Acò, Baudoin começou a explorar a vida dos seus familiares, amigos e amantes, numa complexa dança autobiográfica. Em 1995, com La Diagonale des Jours, o autor criou o primeiro livro a quatro mãos, com Tanguy Dohollau, numa espécie de correspondência gráfica. Finalmente, em 2011, cria o primeiro livro em parceria com Jean-Marc Troub’s, Viva la vida: los sueños de Ciudad Juárez, cuja missão foi a de visitar um país onde têm lugar crimes contra a dignidade humana, e se proporciona um encontro directo com as pessoas que sofrem, e se lhes pergunta “o que sonhas?”. Os retratos e testemunhos recolhidos pelos dois autores – depois em Le Goût de la terre, fruto de uma viagem a Bogotá, e Humains, la Roya est un fleuve (L’Association, 2018), segundo livro que é o cerne da presente exposição –, têm sido dos mais comoventes, empáticos e urgentes gestos gráficos da última década.
Humains tem lugar “mais perto de casa”, nas margens do Roya, um pequeno rio que nasce em França e desagua no Mediterrâneo, já em Itália. Nessa zona transfronteiriça em mais que uma dimensão, os dois autores encontraram-se com migrantes do Sudão, Eritreia, Serra Leoa, Chade, Afeganistão, e as associações que os apoiam, em busca das mesmas respostas humanas. Contra a violência fratricida, religiosa, étnica, social ou económica, e a desumanidade que enfrentam nas praias da Europa, por vezes o acto de um artista se sentar, desenhar um retrato, perguntar pelo nome e o sonho, é um acto de solidariedade e salvação profundo e duradouro.
La Traverse(L’Association, 2019) é um diálogo de diários, veiculados pela pena do artista. São deste volume as pranchas duplas que desenham as paisagens entre a observação natural, a empatia além-humana e o sonho fusional. Co-assinado por Mariette Nodet, esquiadora de competição, alpinista, trekker, foca a viagem a pé dela com a sua filha pelas paisagens belas e ásperas das faldas dos Himalaias, entre a Índia e o Nepal, como forma de luto da morte do seu marido. São dela as palavras escritas, são delas as memórias que desenham as paisagens, as pessoas, os encontros, mas pela mão de Baudoin, que coloca de permeio os seus comentários, as suas próprias viagens, as suas próprias montanhas, encontros e desejos de voo e ascensão, expressos pelos seus instrumentos de desenho.
Desde o seu primeiro livro, uma antologia de pequenos relatos de ficção científica/social em 1981, Baudoin terá criado cerca de 80 livros. Seguindo argumentos ficcionais, adaptando obras literárias, seguindo encomendas institucionais, criando a quatro mãos, compondo a partir de desenhos de campo, entrevistas ou simplesmente abrindo espaços de confissão, todos eles, todavia, se marchetam uns nos outros de modos subtis e incisivos, e que tornam claro ao leitor repetente a ideia de existir em Baudoin um “Poema Contínuo” (expressão de Herberto Helder).
É apenas um percurso de décadas entregues à incessante e diversa prática do desenho, fomentada por dúvidas e desvios – a educação e primeira carreira profissional de Baudoin estava afastada do mundo criativo – e uma paulatina e pungente exposição do si através da arte à medida que se a descobre – a autobiografia e a vida foram tomando conta da sua obra, até se libertar totalmente dos espartilhos de géneros, ficções e formatos – que se atinge o nível superno do desenho de Edmond Baudoin. Tal como alguns dos seus heróis-artistas, que cita textual e visualmente, os pintores chinês Shi Tao, o “monge abóbora amarga” (Guangxi, 1641-1719), e Katsushika Hokusai (Edo-Tóquio, 1760-1849), a idade madura serve para encontrar um novo despojamento, fortuna, força e novos inícios. Veja-se o rosto da velha que encerra Les Corps Collectif, esculpido por minúsculos traços desirmanados mas vogando sob a força da gravidade de um centro que se coalesce naquela personagem, num trabalho tão minucioso quanto expressivo, reminiscente das águas-fortes de Rembrandt. Ou a maneira como o pincel meio-seco vai marcando as folhas de uma árvore, os flancos de uma serra, acaricia os contornos anfractuosos de um rochedo, dobra as ondas, adensa as sombras aterradoras da noite, ou compacta os corpos dançantes, na sua ambição de colectivo.
A irmandade dos assuntos, do corpo humano ao rio serpeante, do arquear de uma montanha a um horizonte espraiando-se, da humanidade de um rosto à revelação de um nome, cumpre-se na linha e na mancha do mestre francês, que ainda percorre, interroga, aprende.
Consulte o CV de Edmond Baudoin aqui.
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Edmond Baudoin
(French– Nice, 1942)Overview:
The artwork of French draughtsman and bande dessinée author Edmond Baudoin(Nice, 1942) is fluid, varied, and still in its infancy. Despite being a consolidated name within the world of French-speaking comics, his practice is an exponential convergence of graphic diaries, travelogues, intimate writing, calligraphy painting, and portraiture. If there are intrinsic rules to comics-making, Baudoin would not know them. And being the creative act something incredibly personal and singular, in his pages there is always room for the other. There is room for dialogue, correspondence, collaboration, or even the very presence of the others, whether they are artists or not, long-time friends or people who Baudoin just met for the minutes necessary to draw their faces, looking them on the eye. This exhibition is an encounter with three of his books, three of his gestures, books which are themselves consequential encounters.
La ligne, un horizon; le corps, une rivière(“The line, a horizon; the body, a river”) presents the original art of three recent books by the author. Very different from one another, they nonetheless are powerful examples of some of the recurrent concerns and the permanent dialogues of the author.
Le Corps Collectif (Gallimard: 2019) is a sort of a long observation notebook or essay. For a few months, Baudoin visited the contemporary art studio & research company Le Corps Collectif, founded by choreographer Nadia Vadori-Gauthier in 2009. He shared with the company their moments of warm ups, reharsals, discussions, creation processes, as well as some of the shows and external actions. Just as he did before withQuestions de Dessin (2002) andLa Musique du Dessin(2005), this is a book that interrogates in different manners the very reason of a drawing, by investigating both its automatisms and the learning that goes into it, both the aspects a drawing is able to command and the unexpected turns. Just as he did in so many other projects, the dialogue that Baudoin engages in opens up a space for these other people to express themselves by their own words, along with their portrait. Above all, these outstanding drawings are formed by the blissful pursuit of the moving bodies, the ceaseless movement of search and loss of the traced object.
Baudoin’s oeuvre has always had a number of inflections. After a fashion, travelogue comics have been present since the beginning of his comic career, and he has participated in several collective volumes. From 1991 onwards, with Couma Acò, Baudoin also began his explorations about the life of his family members, friends and lovers, creating a complex autobiographical waltz. In 1995, with La Diagonale des Jours, he created his first four hands book, with Tanguy Dohollau, in a sort of graphic letters exchange. Finally, in 2011, he created his first partnership with Jean-Marc Troub’s, Viva la Vida!: los sueños de Ciudad Juárez. Its mission was to visit a country in which crimes against human dignity were taking place, and the opportunity for a direct contact with the victims is made possible, so that one can say, “tell me your dream.” The portraits and testimonials gathered by both authors – something they would do once again in Le Goût de la terre, taking place in Bogotá, and Humains, la Roya est un fleuve (L’Assocciation, 2018), the second book that comprises the heart of this exhibition –, have been some of the most touching, empathic and urgent graphic gestures of the last decade.
Humainstakes place “closer to home,” given that the Roya is a small rivulet whose source is in France and whose estuary is in Italy. In this Mediterranean place, that acts as a border in multiple ways, the two artists come across migrants from Sudan, Eritrea, Sierra Leone, Chad, Afghanistan, and the many humanitarian associations that try to help them, in search of the same human responses. Against fratricide, religious, ethnic, social, and economic violence, and the inhumanity they meet at the beaches of Europe, sometimes the sheer predisposition of an artist to sit down, draw one’s portrait, as he asks for one’s name and dream, is a profound and lasting act of solidarity and restoration.
La Traverse(L’Association, 2019) is a dialog between two diaries, even though materialized through Baudoin’s signature. The spreads, included in the exhibition, that present landscapes living between direct, natural observation, an empathic vision that goes well beyond the human, and fusional dreams, are from this volume. Co-signed by Mariette Nodet, a competition skier, climber, and trekker, the book focuses on her trekking trip with her daughter, across the beautiful and rough foothills of the Himalayas, across India and Nepal, as she mourns her late husband. Hers are the jotted down words, hers are the memories that delineate the landscapes, the peoples, the encounters, but all of them are embodied, ink on paper, through Baudoin’s hands, who also inserts himself further by interrogating his own travels, his own personal mountains, his own encounters and desires to fly and ascend, expressed by his drawing tools.
Ever since his very first book, a collection of short social/science fiction stories in 1981, Baudoin has put out around 80 titles. Working on fiction, literary adaptations, responding to institutional commissions, creating four hand projects, composing from field drawings, interviews or simply opening confession spaces, each and every one of these books dovetail into one another in the most subtle and trenchant ways, making quite clear to the returning reader the idea that Baudoin is creating a “Continuous Poem” (an expression from Portuguese poet Herberto Helder).
Only a decades-old dedication to the unremetting and diverse practice of drawing, upheld by doubts and detours – Baudoin's education and very first professional life was quite distant from the creative world –, and a slow yet hard-hitting exposure of the self through art as one discovers it – autobiography and life became the centre of this oeuvre progressively, until the author broke free completely from the constraints of genres, fictions and even formats – can lead one to reach the supernal level of draughtsmanship of Edmond Baudoin. Somewhat similar to his artist-heroes, which he quotes textually and verbally, the Chinese painter scholar Shi Tao, named “the bitter pumpkin monk” (born in Guangxi, 1641, died 1719), and Katsushika Hokusai (Edo-Tokyo, 1760-1849), mature age is but a new step for letting go of things, for finding new fortunes and forces, and new beginnings. Take a moment to look at the face of the old woman that is found in the last scene of Le Corps Collectif, sculpted by a jumble of loose, minute, swift lines that are held together by the force of gravity of a core that becomes that character, a work as minute as it is expressive, reminiscent of Rembrandt’s late etchings. Or notice as his half-dried brush marks the leaves of a tree, or the sides of a mountain, or how it caresses the angular contours of a seaside rock, how it folds the waves, how it darkens the terrifying shadows of a lonely night, or how it embraces and solidifies multiple, dancing bodies, in their ambition for unison.
The brotherhood of these subjects, from the human body to the meandering river, from the bending of a mountain to the expanding of an horizon, from the humanity of a single face to the revelation of one’s name, is embodied by every single line and blot of the French master, who is still searching, questioning, learning.
See Edmond Baudoin’s CV here.
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